sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Diálogos sobre a Infância


"Diálogos sobre a Infância"
Adriana Friedmann

Etimologicamente infantia é a dificuldade ou incapacidade de falar; criança: indivíduo na infância, criação; o que é novo, novidade. A infância é símbolo de simplicidade natural, de espontaneidade.
De que infância estamos falando, a que tipo de criança estamos nos referindo? Sempre, em primeira instância àquela criança com a qual estamos mais familiarizados, com a qual convivemos no nosso cotidiano. Mas é necessário ampliar este perfil que temos de infância e considerar os vários contextos e situações das nossas crianças:
- a criança ou o jovem mais idealizados, globalizados, bem alimentados, limpos e educados, membros de famílias tradicionais (com mãe, pai, irmãos) são a referência da mídia em geral;
- a criança ou o jovem provindos de famílias desestruturadas, desde a família de mãe solteira, pais separados onde só a mãe ou só o pai são os responsáveis, até crianças adotadas;
- a criança ou o jovem discriminados pelas mais variadas razões: raça, sexo, origem sócio-econômica, coeficiente intelectual ou necessidades especiais (cegos, surdos, mudos, síndrome de Down, paralisias diversas, gagos)
- a criança ou o jovem criados em orfanatos ou instituições que abrigam crianças abandonadas, violentadas ou que sofreram algum tipo de abuso;
- a criança ou o jovem das periferias das cidades que vivem em barracos, favelas, etc.;
- a criança ou o jovem viciados;
- a criança ou o jovem doentes, internados em hospitais;
- a criança ou o jovem das zonas rurais;
- a criança ou o jovem das comunidades ribeirinhas;
- a criança ou o jovem das comunidades indígenas;
- a criança ou o jovem de diversas origens étnicas: orientais, judeus, italianos, latinos, etc.;
- a criança ou o jovem da rua;
- a criança ou o jovem que trabalham; etc.

É importante sim distinguir a criança à qual estamos nos referindo, pois é este o dado diferencial e fundamental para o nosso trabalho. Junto com as contribuições das teorias sobre desenvolvimento infantil que transitam desde os estudos cognitivos, emocionais, de personalidade, físico-motor até os anímico-espirituais e que partem de uma criança que vive em um contexto pré-determinado, podemos ter um panorama mais próximo desta criança real com a qual convivemos.
Estas informações são fundamentais para uma compreensão mais ampla da infância. Mas, para uma compreensão mais profunda da sacralidade da infância, sobretudo daquela(s) criança(s) com quem estou em contato, preciso poder OLHAR para elas. E este olhar não tem como fundamento somente uma teoria vinda de fora, mas a coragem de acreditar nas minhas próprias percepções, intuições, sentimentos, sinais e imagens. A fonte mais segura é a observação que faço da(s) criança(s), da sua gestualidade, dos seus movimentos, do seu jeito de relacionar-se com os outros, com ela mesma, com os objetos, com o mundo; a observação e tentativa de compreensão das imagens e simbolismo que aparecem nas suas produções, sobretudo não verbais. Como ir ao encontro dessa profundidade, dessa essência que cada criança e cada um de nós trazemos?

O FRUTO DE CARVALHO

James Hillman, psicoterapeuta americano, traz uma reflexão interessante a respeito dos sinais que aparecem ao longo da nossa vida que revelam nosso verdadeiro ser. A teoria do fruto de carvalho propõe que todos nascemos com uma imagem que nos define. Essa imagem, essa idéia é uma centelha de consciência. A teoria do fruto de carvalho afirma que cada vida é formada por sua imagem única, uma imagem que é a essência dessa vida e a chama para um destino.
O fruto de carvalho, possui um significado literal botânico.
O carvalho tem ainda significados mitológicos: o carvalho era uma árvore ancestral mágica na Europa mediterrânea, germânica e celta. Os carvalhos eram árvores pais que atraíam raios dos céus e árvores-mães dando a luz humanos em vários mitos. A árvore em sua forma de noz traz em si também a verdade. Os frutos de carvalho são imagens da personalidade primordial. Os carvalhos são árvores-alma por serem refúgios de abelhas e abrigarem o mel, considerado em muitas culturas como néctar divino. Mas, sobretudo porque adivinhos e sacerdotisas moravam nelas ou em volta delas e podiam expressar o conhecimento e compreensão do carvalho. O carvalho era usado como oráculo. Como todas as árvores, o carvalho por seu porte, idade, beleza e solidez é especialmente sábio e seus frutos trazem toda a sua sabedoria condensada num pequeno núcleo.
O significado etimológico do carvalho diz que: há muita riqueza de sentidos etimológicos da palavra:
- carvalho vem do alemão antigo significa fruto, produzir;
- do sânscrito significa empurrar, dirigir para, conduzir ou guiar.
- em grego designa que é atirado ou cai como a noz de uma árvore, ou lançado como os dados. Etimologicamente, o carvalho tem um encanto primordial: dança com a vida, é sensível, tem também uma ação balística.
Há uma crença antiga que considerava o fruto de carvalho um alimento primordial. A vocação é o primeiro alimento da psique. O fruto de carvalho encerra não só a vida em potencial como também a insatisfação pelo que não foi realizado.
Embora o sabor do fruto de carvalho possa ser nutritivo e doce, o cerne da noz é também amargo.


Este fruto que cada criança traz no seu cerne é o que torna cada ser humano único, singular, especial.

PREOCUPAÇÕES

O que está hoje preocupando, angustiando pais e educadores que atuam junto às crianças?: sexualidade precoce, agressividade, influência da mídia, indústria de brinquedos - consumo, hiperatividade, dificuldade de concentração, doenças.
Vivemos um momento crítico:

- crianças com diversas doenças: alergias, problemas digestivos pela qualidade dos alimentos ingeridos, obesidade até câncer;
- crianças hiperativas, agressivas, com depressão, com problemas de sono, sobrecarregadas de atividades, evasão escolar, falta de interesse, problemas de atenção. Por outro lado crianças muito inteligentes, sensíveis, perceptivas, com muita luz e sabedoria. Os pais e educadores estão desnorteados. Temos muita informação mas falta uma re-conexão com nossos sinais internos. Falta CONFIAR.
Com relação às CRIANÇAS, a nossa sociedade, a nossa cultura, mesmo que de forma inconsciente, está abafando o seu ser, a sua alma, tirando a oportunidade delas serem elas mesmas.
Com relação aos EDUCADORES, costumamos abraçar um caminho, uma teoria que nós dá apoio e temos dificuldade de olhar para dentro de nós mesmos e para as nossas crianças.

COMO CUIDAR DESSAS DIFICULDADES/DESAFIOS?

Há necessidade, no trabalho junto às crianças e jovens de nos desapegarmos de dogmas para poder olhar para eles de forma INTEIRA e ler as mensagens que eles falam através da palavra, do corpo, do não dito, da sua arte, dos seus medos, das suas dificuldades, das suas habilidades, da sua timidez, da sua agressividade.
Há também necessidade de conhecer as teorias sobre desenvolvimento infantil dos vários pontos de vista, através do estudo e da pesquisa. Assim mesmo, há necessidade de conhecer, pesquisar, vivenciar e ter um leque de possibilidades de propostas que se adequem às necessidades, interesses, habilidades, dificuldades das crianças e jovens.

IMAGENS

A LINGUAGEM DO CORPO
O corpo está falando por fora como estamos por dentro. Onde estão os desequilíbrios, os vícios, os medos. Ele responde instantaneamente reagindo frente às situações do cotidiano. Vamos tentar perceber o que se contrai, o que se fecha, o que se abre, qual parte fica mais tensionada, quando se instaura um nó na garganta ou no estômago, etc. nas situações de angústia, medo, insegurança, raiva, amorosidade, etc.

NOSSA CRIANÇA INTERIOR
Será que cuidamos dessa nossa criança?
Esta criança vive e convive conosco até o hoje. Precisamos cuidar também dela, alimentá-la onde ela estiver com fome. Dar-lhe também possibilidades de SER ela mesma e EXPRESSAR esse ser para o mundo.


NOSSA CASA FORA E DENTRO
A nossa casa externa reflete o estado da nossa casa interna. Movimento ou paralisia; sujeira ou limpeza; organização ou bagunça; falta de intimidades; falta de luz; cantos escuros, etc. É importante podermos dar atenção à nossa casa (de fora e de dentro) para transitar o caminho da transformação.

A NOSSA MÚSICA FICOU IMPREGNADA NO NOSS SER.
Podemos ensinar nossa melodia para os outros, mas para mais ninguém, além de cada um mesmo, esta melodia terá o mesmo significado que tem para mim. Cada um tem a sua própria música que o torna singular, diferente, único. (inclusão). Todos temos algum diferencial que fala de nós, alguma dificuldade/carência.

QUESTÕES E REFLEXÕES

O QUE É UMA INFÂNCIA COM ALMA, COM ESSÊNCIA, SIGNIFICADO?

Uma infância na qual as pequenas e simples atitudes, momentos, gestos, sabores, brinquedos, cantos, histórias, pinturas, produções, toques, olhares são significativos, valorizados.
Uma infância na qual há uma preocupação em se deter no outro, ouvi-lo profundamente, verdadeiramente.
Estar sensível e voltado às manifestações de: carências, agressividade, dificuldades, interesses, desejos, conflitos; ao que diz o GESTO, o que diz o ESPAÇO, o que dizem os PRODUTOS, o que dizem as DIFICULDADES, o que dizem as BRINCADEIRAS SOBRE A CRIANÇA E O JOVEM?

O QUE É UM ESPAÇO COM ALMA, COM ESSÊNCIA, SIGNIFICADO?

É o espaço feito por e para a criança. O educador pode pensar em tornar o espaço cálido, aconchegante, familiar; poderá se preocupar com a ambientação, as cores, plantas, mobiliário flexível, materiais e sua distribuição.

Já a criança dará sua cor com suas produções, seus cuidados, co-criação e respeito às regras; impregnará o espaço com seu SER.

O QUE É UMA ATIVIDADE COM ALMA, COM ESSÊNCIA, SIGNIFICADO?

É aquela atividade que se adequa à faixa etária, ao momento, ao grupo, ao contexto, ao espaço, às dificuldades, às habilidades, às necessidades, aos interesses.
É a atividade que serve de canal de EXPRESSÃO para dar voz às crianças.
É aquela atividade que leva em conta o corpo, a mente, as emoções, o espírito da criança na sua inteireza.

COMO CHEGAR PRÓXIMO DO MUNDO MISTERIOSO E SIMBÓLICO DA CRIANÇA?
CONSEGUIMOS CAPTAR, APREENDER A ALMA DA CRIANÇA? COMO FAZER?
Através da OBSERVAÇÃO das imagens que a criança traz, da sua PERCEPÇÃO, OUVINDO o que ela tem a dizer, ficando conectado com meu próprio CORPO, INTUIÇÕES, EMOÇÕES.

O QUE FAZER COM ESTAS INFORMAÇÕES?

Vivenciar, pesquisar, estudar POSSIBILIDADES EXPRESSIVAS para ampliar meu universo de opções.
Estudar e conhecer profundamente sobre os PROCESSOS DE DESENVOLVIMENTO INTEGRAL do ser humano nas diferentes faixas etárias.
Procurar CONHECER E RE-CONHECER a minha criança REAL.
Tomar decisões, fazer ESCOLHAS responsáveis das atividades adequadas.
CRIAR E RE-CRIAR propostas fazendo uma releitura das crianças tanto de forma individual quanto no grupo.
ORIENTAR OS PAIS e incentivá-los a oferecer apoio e afeto.
Dançar da SOLIDÃO ao TRABALHO COOPERATIVO EM EQUIPE.
O PAPEL DO EDUCADOR OU O MITO DO MINOTAURO

Gostaria de ilustrar com um mito que pode vir a mostrar, pelas suas imagens, as possibilidades e caminhos para empreender este processo de transformação.
Trata-se do mito de Teseu e o Minotauro.
O mito conta que Dédalo construiu um grande labirinto embaixo do palácio de Cnosso, para abrigar o Minotauro, metade homem metade fera. O labirinto era um edifício com inúmeros corredores tortuosos que davam uns para os outros e que pareciam não ter começo nem fim.
O Minotauro era um monstro nascido da união da rainha Pasifae com um touro sacrificial branco e o labirinto era para mantê-lo fora das vistas.
A cada nove anos o Minotauro era alimentado com vítimas oferecidas como tributo por Atenas em compensação pela morte de Androgeu, filho do rei Minos. Sete rapazes e sete donzelas eram escolhidos para a viagem fatal a Creta, onde eram devorados. Um ano, Teseu, filho do rei Egeu, de Atenas, ofereceu-se par ir e livrar os atenienses dessa calamidade. Ele prometeu ao pai que, se conseguisse matar o Minotauro, na viagem de volta a Atenas trocaria as velas do barco, que eram pretas, por brancas.
Eles velejaram a Creta e, em sua chegada, Ariadne, filha do rei Mino, apaixonou-se por Teseu desde que ele voltasse para ela, se sobrevivesse. Ela lhe deu um novelo de um fio de ouro para que ele desenrolasse atrás de si à medida que avançasse pelo labirinto, de modo que, se fosse bem-sucedido em matar o Minotauro, seria capaz de seguir o fio e encontrar a saída.
Teseu entrou no labirinto, encontrou o Minotauro no centro e o matou. Então, enrolou o fio, encontrou o caminho de saída do labirinto e escapou de Creta com Ariadne. Na ilha de Naxos eles comemoraram a fuga e sua união dançando o Geranos, a Dança do Grou.
Depois disso, Teseu esqueceu-se de suas duas promessas: primeiro, abandonou Ariadne na ilha, indo embora sem ela; segundo esqueceu-se de içar as velas brancas na viagem de volta. Quando se aproximou de Atenas, seu pai, espreitando dos recifes, avistou as velas pretas e atirou-se ao mar, em desespero. O mar recebeu seu nome, Egeu, que perdura até os dias atuais. Teseu foi aclamado o novo rei, com o coração pesado pelo luto.


Uma possível interpretação

Este mito traz imagens muito interessantes:
Debaixo da terra, no labirinto em formato de útero às escuras, o herói, Teseu, o masculino, precisa levar o fio iluminado da feminilidade para encontrar seu caminho, da morte para a vida nova. A tarefa do herói é a de libertar o lado feminino (anima) para a realização de uma criação verdadeira. Ele vai enfrentar o Minotauro, símbolo daquele aspecto escuro, animal, instintivo da nossa psique que guarda o inconsciente. Teseu, o herói, tem uma jornada a ser enfrentada no seu percurso pelos caminhos escuros do inconsciente. Ariadne representa o aspecto feminino que tem, no seu novelo de ouro, a sabedoria do inconsciente.
Poderíamos fazer uma analogia entre Teseu e o educador, no sentido do caminho através do labirinto, onde, ao mesmo tempo em que ele pode se perder, ele tem diversas possibilidades a serem descobertos. Ele precisa, porém enfrentar e vencer esse lado escuro (representado pelo Minotauro), seus medos, angústias e pressões, para poder encontrar sua verdadeira essência e seu caminho seguindo o novelo de ouro; prestar atenção aos sinais da intuição, das sensações, emoções, sentimentos, para retornar e juntar-se ao seu aspecto feminino.

Qual é o nosso fio de Ariadne?

A OBSERVARÇÃO, A CAPACIDADE DE OUVIR a criança.
A ESCOLHA E ADEQUAÇÃO DE ATIVIDADES - música, arte, expressão corporal, brincadeiras, contos, em função de necessidades, interesses, habilidades, dificuldades de cada um.
O EDUCADOR se cuidar, se observar, se perceber, prestar atenção aos sinais do seu corpo, se expressar.

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